sábado, 4 de setembro de 2010

O cefalópode - Uma Ficção Pessimista



Era uma vez um cefalópode. Nascido em berço pobre, que mal tinha o que comer. Tantas vezes lhe era reservada não mais que uma das três porções diárias de alimento. Como todos os machos de sua região, diante da necessidade imediata de ingressar no mercado de trabalho e pela pouca escolaridade, empregou-se em uma das catedrais da mais-valia. O cefalópode, coitado, perderia um de seus tentáculos no exercício profissional, mas mal sabia ele que esta se tornaria sua marca registrada.

Crescendo ainda mais e indignando-se contra as injustiças do capitalismo aderiu ao movimento sindical chamando todas os seus companheiros à luta. Sua liderança e visão eram notáveis e inspiravam mais e mais seguidores. Cheio de força e coragem, percebeu que não era só a sua realidade e a dos seus companheiros que a cada dia se degradava, mas era a realidade de todos os cefalópodes daquela Fossa - abissal, obviamente. E neste dia ouviram das placas tectônicas as margens plácidas um brado - quase ridículo - que ecoaria por  décadas: "Lula, lá!"

"Crente fundamentalista" na democracia - pensava-se assim até o seu segundo mandato - lançou-se à política, concorrendo nada mais, nada menos que à presidência da República Federativa da Fossa - abissal, como já fora mencionado. Nada conseguiu senão um cargo inferior... Contudo, os anos de luta contínua acabaram por arrefecer o furor intempestivo daquele jovem cefalópode, tornando-o mais receptivo, mais plausível, mais político, até que como um voto de confiança de toda a população", tornou-se o Presidente da República.

Um mandato... dois... É eleita a sua sucessora! Nunca se viu tamanha popularidade... Nunca se viu tanta comida na mesa, nem no tempo que se amarrava cavalo-marinho com plânctons. Ninguém mais falava na extinta liberdade de imprensa, "aquela velha ranzinza que sempre nos deixava tristes com as notícias de corrupção"- comentavam. Ninguém mais falava das minorias esmagadas pelo preconceito, pois estas agora tinham o respaldo da lei para serem o que quisessem, fossem o que fossem - sem perceber, já não mais se adequavam à maioria, mas definiam o como e o porquê das coisas. Ninguém sabia mais o que era a fúria de Poseidon, pois a República da Fossa - abissal - é laica. Tudo era relativo, logo, a liberdade religiosa era o padrão da transigência, "Podem pregar à vontade!" - dizia o cefalópode analisando a Nova Constituição. Foi neste dia que um padre, ou pastor, não se sabe ao certo porque a mídia era estatal, foi agredido e morto num metrô. O motivo é certo, ao ser argüido leu um texto bíblico que condenava a homossexualidade. Foi neste dia que passou-se a comemorar o Dia Nacional da "Não-intransigência". 

Depois de vinte anos no poder, as minorias hoje são composta por ortodoxos, intelectuais, religiosos, escrupulosos, heterossexuais, repórteres, humoristas, poetas e todos aqueles que, apesar da fossa amam a verdade, amam a liberdade, amam a justiça. Hoje são estes que vivem nos guetos, sem direitos e sem voz. 

Triste mesmo foi o que ninguém conseguiu perceber a tempo, que o menino pobre não estava tentando consertar o mundo, mas dar o troco.






4 comentários:

  1. Uma ficção - realidade de perfeito entendimento. Como dizia o poeta: "E nossa história não estará pelo avesso assim, sem final feliz. Teremos coisas bonitas pra contar.
    E até lá, vamos viver. Temos muito ainda por fazer. Não olhe pra trás - Apenas começamos.
    O mundo começa agora - Apenas começamos".

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